Redigir as páginas de “Agradecimentos” da dissertação ou da tese é uma das últimas tarefas do aluno de pós-graduação para finalizar seu curso. A tarefa é aparentemente fácil, mas essa visão é errônea. A primeira parte, referente aos órgãos financiadores, instituições e os politicamente necessários, é simples. A dificuldade vem com as muitas recordações e reflexões sobre as pessoas sem as quais seguramente muitas etapas não teriam sido vencidas para alcançar, naquele momento, a tão sonhada conclusão do mestrado ou doutorado. O pior é que depois de sofridas decisões e escolhas, ainda somos obrigados a incluir importantíssimas pessoas na última frase de praxe: “e a todos que de alguma forma contribuíram para a conclusão desta obra…”.
Em minha tese de doutorado eu também não consegui listar todas as pessoas que me ajudaram a iniciá-la e finalizá-la, mas naquela tradicional frase estão incluídas pessoas e histórias como esta:
Em Viçosa, os principais jornais de São Paulo vêm nos primeiros ônibus que chegam à cidade por volta das oito da manhã, só então são distribuídos. Era comum eu ir às bancas no meio da manhã e ainda ter que esperar os jornais chegarem da cidade grande. Foi em um destes jornais que uma colega de república me mostrou o anúncio de 43 bolsas de estudos para brasileiros irem estudar no Japão.
Eu nem havia terminado o primeiro ano do mestrado na Universidade Federal de Viçosa ‒ UFV, mas estudar no Japão era um dos sonhos que eu perseguia na época*. Atentamente, fui colocando um sinal em frente a cada item da longa lista de condições e documentos necessários para a inscrição. Ao ver que eu havia sinalizado todos os itens, lembro-me de ter pensado:
“É difícil, mas se 43 pessoas vão conseguir, eu posso ser uma delas!”.
Eu poderia enviar tudo pelo correio, mas quis fazer a inscrição pessoalmente no Consulado do Japão no Rio de Janeiro. A oportunidade veio com o congresso de Botânica em Nova Friburgo. Minha amiga Patrícia Giloni conseguiu uma carona até o Rio com o Marcelo Moura, outro estudante da UFV. Não consigo me lembrar se nosso plano era procurar um lugar no Rio ou seguir para Nova Friburgo naquele dia, mas o fato é que choveu muito durante a viagem e chegamos bem mais tarde do que esperávamos. Gentilmente, Marcelo nos propôs passarmos a noite na casa de seus pais, dona Moema e o senhor Paulo.
A afinidade com dona Moema começou com a semelhança do nome, sua hospitalidade e simpatia. No café da manhã contei o meu desejo de conseguir uma das sete bolsas alocadas para o Rio de Janeiro, pois Minas Gerais não tinha consulado do Japão. Prontamente ela passou a compartilhar do meu desejo e planejar cada passo, datas das provas e entrevistas, trajeto para chegar ao consulado, roupas, e até o que comer antes de cada etapa. Ofereceu-me hospedagem para ficar sempre que voltasse ao Rio, e estranhamente não me ensinou a pegar o ônibus da Rodoviária até a sua casa. Em vez disso, falou que iria me buscar e levar de carro, pois seria menos preocupante para ela. Vale lembrar que isso era em 1996, o celular não fazia parte do nosso dia a dia.
Por felicidade, tive que retornar ao Rio por mais cinco vezes, e ela sempre estava me esperando no local combinado. Dona Moema é uma anfitriã nata, pois além de tudo de útil que podemos ler em um bom livro de etiquetas e dicas para receber hóspedes bem, ela ainda deixava o quarto absolutamente escuro para eu dormir confortavelmente, falava baixo quando achava que eu estava dormindo, pedia para a empregada passar toda minha roupa amassada da viagem e, sabendo da minha intolerância a lactose, evitava pratos com leite durante as minhas estadas em sua casa.
Inicialmente, eram mais de 90 candidatos, e fiquei entre cerca de 30 para as provas escritas; depois, entre os 18 para a entrevista. A cada fase vencida, era uma vitória dos três.
Enfim, chegou o temido dia da entrevista. Considerando-se todas as chances de imprevistos, calculados e recalculados pelo casal, o senhor Paulo e eu saímos do apartamento na Tijuca três horas antes do horário da entrevista. Dona Moema fez questão de descer até o estacionamento, cheia de recomendações de cuidados e preocupações com tudo. Conferiu até os pneus do carro. Estava muito quente e ainda calculei que ele iria pagar caro só de estacionamento. No momento que passou pela minha cabeça terminar rápido a entrevista, para poupá-lo, o senhor Paulo disse em alto e bom tom:
– Noemia, suba e fique no ar condicionado, aqui você vai se cansar só com o calor! Leve o tempo que você precisar, não tenha pressa, ouça bem as perguntas e responda com calma. Não se preocupe comigo, eu vou saber me distrair por aqui. Quando você descer, estarei aqui te esperando. Consiga essa bolsa, menina! Enquanto aguardava minha vez, eu não sabia como agir com os demais candidatos, eram meus concorrentes, mas também poderiam ser meus próximos colegas. Na dúvida, eu só observava tudo. Um deles entrou bastante confiante, já havia ido ao Japão, não era descendente, mas dominava um nível muito bom da língua. Calculei que uma vaga já seria dele. Mas ele saiu da sala revoltado. Disse que os entrevistadores não eram bons, porque ele teve que explicar três vezes o que ele fazia, mas eles não o entenderam. Alguém soprou ao meu lado.
‒ Eles entenderam, sim. Entenderam que ele não tem paciência nem flexibilidade de respostas.
Outro candidato chegou oito minutos atrasado, a ordem e o horário dos seguintes não foram adiantados. O candidato chegou, pediu desculpas, culpou o trânsito e entrou. Cinco minutos depois, saiu cabisbaixo da sala.
Desta vez até eu entendi o que significava. Agradeci enormemente o excesso de cuidados dos meus anfitriões.
Com sinceridade, não consigo recordar claramente o que me foi perguntado e, muito menos, o que eu respondi na minha entrevista. Apenas tentei obedecer e não decepcionar o Sr. Paulo. Ouvi bem os entrevistadores e só respondia quando eu tinha confiança que tinha entendido a pergunta.
Encurtando a história, no dia 29 de setembro de 1997 lá estavam eles, ao lado de minha mãe, emocionados, me dizendo adeus no Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro/Galeão. Eu com o passaporte em mãos rumo ao Japão.
Mas antes de finalizar esta crônica, ainda falta registrar um ocorrido.
Na quinta vez que fui ao Rio para uma confraternização e instruções aos sete que passaram, Dona Moema me deixou no Shopping da Barra e foi resolver alguns assuntos dela. No final da tarde, ela foi me buscar e resolveu voltar pela serra para fugir do trânsito. Quando já avistávamos o seu prédio, comecei a ouvir uns estalos diferentes. De repente, dona Moema muito nervosa gritava em vão com o motorista do carro da frente, mandando ele ir logo, sair da frente…. Demorei para entender, mas estávamos no meio de um tiroteio!
Dona Moema pegou com força o meu pescoço e falou bem alto – Noemia, abaixe-se aí no banco! ABAIXE BEM!!! Você está perto do nosso prédio, se acontecer algo comigo vá para lá, não importa o que aconteça comigo vá para lá! ‒ Ela chamava por Deus e por tudo quanto é santo… e finalizava: ‒ Ai! Eu deveria ter previsto que isso poderia acontecer, que besteira que eu fiz! Que besteira que eu fiz! Apavorado, o motorista da frente não conseguia seguir e ficou paralisado. Dona Moema conseguiu finalmente ultrapassá-lo, então foram várias cantadas de pneus. Eu espero nunca mais ver uma mulher tão furiosa e valente no volante como ela naquele dia. Acredito que os santos ouviram os seus chamados, pois as balas e todos os outros obstáculos saíram de nossa frente. Enfim, chegamos tremendo, mas sãs, salvas e juntas no apartamento. À noite, eu tinha certeza que os jornais iriam comentar algo. Para mim, era notícia de Jornal Nacional. Mas a realidade era outra, esses tiroteios eram tão comuns que já não eram mais assunto de noticiário.
Definitivamente, sem essas pessoas eu nem teria iniciado minha história no Japão, assim dedico esta história a vocês, dona Moema e senhor Paulo. MUITO OBRIGADA!
*História narrada em “Esperei 30 minutos”. Livro “A porteira azul e outras histórias”, Editora Valer, 2014. Autora Noemia Kazue Ishikawa (publicação autorizada para a ABAJICA).